segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Stanislavskyanamente falando...

Seguidamente algumas pessoas me perguntam o que acho de Stanislavsky e suas técnicas de “teatro psicológico” e que fazem as pessoas “sofrerem enquanto atuam”. A essas perguntas somam-se uma expectativa de que talvez eu vá falar mal do russo, porque prefiro trabalhar com um “teatro físico” (notem que tudo o que define grosseiramente alguma coisa está entre aspas, hein...?).

Pois bem, minha resposta sempre vai pelo mesmo caminho: Imaginem uma transição de século XIX / XX, onde o tipo de atuação em vigor era declamatório, sem muitas construções de personagem, onde ninguém pensava muito nisso, e apenas contar os versos de um poema e saber dizê-lo de acordo com os parâmetros da época era o suficiente para termos uma definição de “bom ator”. Imaginem que nesse contexto alguém que comece a pensar em trabalho de ator, comece seu trabalho a partir do zero, sem ter muito onde apoiar-se. Seria muito normal que essa pessoa se apoiasse em outras áreas, como a das novas descobertas sobre o inconsciente, para embasar seus experimentos. Digamos que alguém devesse abrir essa porta, mesmo que alguns pontos do seu estudo fossem negados depois – por ele próprio.
                                                             
Aí está o valor das teorias de Stanislavsky: o pioneirismo e a posterior coragem de voltar atrás e dizer que algo estava errado. Mas convenhamos que, se não fosse esse erro inicial, não haveria novas e importantes conclusões a respeito do trabalho do ator.

Existe uma grande – e desnecessária – tendência a negar Stanislavsky, como se ele fosse um monstro da psicologia que invade o palco do ator postcontemporâneo. Em um rápido tour por alguma escola/ faculdade/ conservatório/ casting podemos facilmente captar trechos de conversas protagonizados por atores em formação que já repetem milhares de “frases feitas” contra o russo. Ou seja, existe toda uma geração de profissionais em formação que antes de conhecer o assunto, já começa a descredenciá-lo. E isso – sempre termino minha resposta com essa brilhante conclusão – não é legal.

- “Mas eu achava que você gostasse mais de teatro físico, de Mímica Corporal, Decroux e Grotowsky... como é que pode você defender Stanislavsky?”
- “Ué, mas não dizem que provavelmente se Stanislavsky estivesse vivo hoje, provavelmente estaria na linha de Grotowsky? E a expressão ‘ação física’, cunhada pelo russo, o que significa exatamente, eh?”

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Essa questão voltou à minha mente em razão de algumas conversas que tivemos nos ensaios de Kassandra. Na mesma semana, me deparei com um livro de Anne Bogart, chamado “A preparação do diretor”, onde em determinado momento ela explica a origem do equivoco a propósito de Stanislavsky no teatro norte-americano. Achei digno transcrever o trecho inteiro, sempre é interessante revisarmos na nossa história a origem de alguns mal-entendidos para compreendermo-nos hoje. E se for a Anne Bogart que nos explica... bom, aí – vou terminar minha parte do texto com essa brilhante conclusão – é legal.

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Com vocês, mistress Bogart:

O final dos anos 1920 trouxe a Depressão. O vaudeville, a jóia da coroa do entretenimento popular norte-americano, morreu quando os filmes falados substituíram a arte dos filmes mudos. A absorção do talento pelo cinema começou a diluir o vigor do palco. Um novo método para atores, baseado nas antigas teorias do russo Konstantin Stanislavsky, veio a dominar nossa abordagem da representação pelo resto desse século.
            Stanislavsky e sua companhia, o Teatro de Arte de Moscou, apresentaram peças de Tchekov e Gorky nos Estados Unidos, durante os anos de 1923 e 1924. Quando chegaram aos Estados Unidos, essas produções já tinham quase vinte anos e apenas refletiam as primeiríssimas experiências de Stanislavsky com a “memória emotiva” e a “concentração interna”. Mas para as sensibilidades norte-americanas, essa revolucionária abordagem da representação teve um tremendo impacto sobre os jovens do teatro, entre eles Lee Strasberg, Stella Adler, Robert Lewis, Harold Clurmn e muitos outros, que nunca tinham visto nada igual àquela extraordinária companhia de atores da Rússia.
            Bastante influenciado pelas teorias pavlovianas dos reflexos condicionados e por certas descobertas da atraente e nova fronteira do inconsciente, Stanislavsky havia desenvolvido métodos para o treinamento do ator que resultaram em um sedutor realismo psicológico e um notável conjunto de representações capaz de retratar o comportamento humano ultrarrealisticamente. Quando Stanislavsky deixou os Estados Unidos, os professores de interpretação ligados à pesquisa inicial de Stanislavsky, inclusive Richard Boleslavsky e Maria Ouspenskaya, que permaneceram em Nova York, foram assediados para ensinar esse método a entusiasmados e ávidos jovens norte-americanos. Lee Strasberg, que havia sido fortemente influenciado pelas idéias recentes e modernas de Sigmund Freud, uniu seu conhecimento de Stanislavsky com a paixão por Freud e chegou a uma abordagem poderosa da emoção e do inconsciente, usando o que hoje conhecemos como memória afetiva, evocação emocional e memória sensorial. Essa abordagem da atuação se transformou na Bíblica do Group Theater, do Actors Studio, da Neighborhood Playhouse  e de muitas ramificações.
          Os norte-americanos abraçaram os experimentos russos apaixonada e equivocadamente, enfatizando de forma exagerada os estados emocionais personalizados. O sistema Stanislavsky, então diluído  um “método”, mostrou-se eficaz no cinema e na televisão, mas no teatro produziu um desastroso sufocamento da entrega emocional. Acredito que a grande tragédia do palco norte-americano é o ator que, devido a um entendimento grosseiro de Stanislavsky, supões que “se eu sinto, o público sentirá”.
        As técnicas originadas da visita do Teatro de Arte de Moscou aos Estados Unidos constituíam, de fato, um pequeno aspecto da vida inteira que Stanislavsky dedicou ao teatro. Ele logo abandonou seus primeiros experimentos com memória afetiva e partiu para um trabalho pioneiro em ópera e orientou experimentos em ação física e em algo que chamou de unidade psicofísica da experiência. No fim da vida, rejeitou suas técnicas psicológicas iniciais, chamando-as de “equivocadas”. Mas era tarde demais. Os norte-americanos já haviam se apegado a um aspecto extremamente limitado de seu “sistema”, transformando-o em uma religião. A americanização ou miniaturização do sistema Stanislavsky tornou-se o ar que respiramos e, assim como o ar que respiramos, raramente temos consciência da sua onipresença.

BOGART, Anne. A preparação do diretor: sete ensaios sobre arte e teatro. WMF Martins Fontes, São Paulo, 2011, pp. 43-45.

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