segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023

Djavanear o que há de bom

"Pode ser uma coisa piegas, mas isso é essencial: você já imaginou se todo mundo tivesse amor no coração, como o mundo seria? Sei que é um papo meio idiota, não dá pra falar com qualquer um, sempre tem aquele que vai levar para o lado de chacota. Mas o amor é fundamental porque o amor traz consciência, o amor traz piedade, traz perdão: o amor traz o construir. O amor faz a pessoa se interessar pelo outro. Não há coisa mais importante na vida.”

 Djavan, em entrevista ao Mano Brown.

 

Eu fui uma vez só ao show do Djavan. Eu tinha 16 anos e estava completamente fascinado que ia vê-lo ao vivo no Planeta Atlântida de 2000. Ao longo dos outros shows da noite eu fiz de tudo pra ir avançando na multidão e ficar o mais perto possível do palco para poder vê-lo de perto. O maior problema é que depois dele entrariam os Raimundos, e todos os fãs de Raimundos estavam fazendo o mesmo - avançando para ficar mais perto do palco. Eu, que não entendia nada de Raimundos, mas adorava o álbum Ao Vivo do Djavan, cantava a plenos pulmões, emocionadíssimo, sozinho no meio dos homens grandões e tatuados, enquanto eles me olhavam muito - muito - torto. Quando começou o show dos Raimundos foi a vingança: abriram uma roda punk gigantesca. Mas eu só me dei conta de que eu era o centro da roda punk quando um jato de água podre das poças acumuladas durante 7 horas de festival voou pela minha cara e roupas. Das nuvens à concretude do chão e da poça d'água voando em todas as partes do meu corpo, essa foi minha primeira experiência tentando apenas sentir a música tentando fazer com que a vergonha pelo julgamento dos outros não me privassem de sentir o valor daquele momento.

 

Djavan no show do Planeta Atlântida do ano 2000.
Uma das programações mais aleatórias da história do festival, mas que me permitiu vê-lo ao vivo.

Hoje eu conto essa história de vez em quando, como aquelas anedotas que a gente conta quando alguém relembra fatos engraçados que viveu. Mas muito além da anedota em si, são muitas coisas que vêm à minha cabeça quando penso nisso. Por exemplo: quem foi que teve a maravilhosa ideia de programar o show do Djavan logo antes do show dos Raimundos? Critério zero. Depois eu costumo lembrar que o Djavan não parecia estar muito feliz em cena – talvez porque a galera do público raimundense estivesse vaiando o tempo todo (sim, não foi apenas para mim que a galera torcia o nariz: eu dividi a honra de ser vaiado junto com Djavan. Ele no palco, eu na plateia) ou talvez porque ele soubesse que tocar nesse festival feito por uma rádio de pop rock gaúcho que misturava na programação Ivete Sangalo com Men At Work, passando por Pato Fu, Wilson Sideral (o irmão do Rogério do Jota Quest) e Comunidade Nin Jitsu não daria certo. E realmente não deu. Mas o que é “dar certo”, afinal de contas? Hoje, 23 anos depois, eu lembro daquela noite como o momento em que eu vi de perto um ídolo, um artista no melhor sentido da palavra, um músico brasileiro que tem uma das mais belas vozes que pudemos ouvir ao vivo. Mais do que isso: hoje eu escuto um podcast onde o próprio artista reflete sobre sua música, clama por edificar o conhecimento do público e formar novos músicos que possam trabalhar com profundidade artística. Hoje eu escuto uma entrevista onde ele – vítima de boatos de internet sobre ser bolsonarista, coisa que nunca foi – chama atenção para a violência que existe na rede, onde o uso desproporcional da força das palavras soterra qualquer capacidade de entendimento e interpretação de entrelinhas, de poesia, e até mesmo de um discurso direto. Um lugar onde as pessoas só ouvem o que querem ouvir, só entendem o que querem entender e usam do poder das palavras para atacar e gerar ódio. Um lugar onde aquelas pessoas que me vaiaram, que o vaiaram, que nos olharam torto e que depois nos chutaram estão com o microfone na mão, tendo espaço para dizer o que bem quiserem.

 

Eu tinha 16 anos. Naquele 2000 estava no meio do ensino médio, ainda ia começar a estudar espanhol, começaria meu primeiro namoro um ano depois, tinha acabado de começar a fazer teatro e também estava aprendendo que deixar aflorar emoções em público era um risco. Gostar de Djavan poderia ser um risco num mundo masculino despotencializado.

 

Hoje tenho 39. Estou sempre aprendendo que o amor tem várias faces: é lindo e tenso, é forte e leve, tem um lugar de luz gigante, mas também de escuridão profunda. Estou aprendendo a chorar. Estou aprendendo a deixar a lágrima cair quando enxergo beleza nas coisas, nas pessoas, na arte, na música. Estou aprendendo a deixar aflorar os sentimentos que tantas vezes soterrei por estar cercado de marmanjos que ainda não descobriram a importância disso, e que ainda insistem em olhar feio aquele que tenta. Estou aprendendo que o amor, por ser amor, invade. E fim.

 


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