"Pode ser uma coisa piegas, mas isso é essencial: você já imaginou se todo mundo tivesse amor no coração, como o mundo seria? Sei que é um papo meio idiota, não dá pra falar com qualquer um, sempre tem aquele que vai levar para o lado de chacota. Mas o amor é fundamental porque o amor traz consciência, o amor traz piedade, traz perdão: o amor traz o construir. O amor faz a pessoa se interessar pelo outro. Não há coisa mais importante na vida.”
Eu fui uma vez só ao show do Djavan. Eu tinha 16 anos e
estava completamente fascinado que ia vê-lo ao vivo no Planeta Atlântida de
2000. Ao longo dos outros shows da noite eu fiz de tudo pra ir avançando na multidão e ficar o mais perto possível
do palco para poder vê-lo de perto. O maior problema é que depois dele entrariam os Raimundos, e todos os fãs de Raimundos estavam fazendo o mesmo -
avançando para ficar mais perto do palco. Eu, que não entendia nada de
Raimundos, mas adorava o álbum Ao Vivo do Djavan, cantava a plenos pulmões,
emocionadíssimo, sozinho no meio dos homens grandões e tatuados, enquanto eles
me olhavam muito - muito - torto. Quando começou o show dos Raimundos foi a vingança:
abriram uma roda punk gigantesca. Mas eu só me dei conta de que eu era o centro
da roda punk quando um jato de água podre das poças acumuladas durante 7 horas
de festival voou pela minha cara e roupas. Das nuvens à concretude do chão e da
poça d'água voando em todas as partes do meu corpo, essa foi minha primeira
experiência tentando apenas sentir a música tentando fazer com que a vergonha
pelo julgamento dos outros não me privassem de sentir o valor daquele momento.
Djavan no show do Planeta Atlântida do ano 2000.
Uma das programações mais aleatórias da história do festival, mas que me permitiu vê-lo ao vivo.
Hoje eu conto essa história de vez em quando, como aquelas
anedotas que a gente conta quando alguém relembra fatos engraçados que viveu.
Mas muito além da anedota em si, são muitas coisas que vêm à minha cabeça
quando penso nisso. Por exemplo: quem foi que teve a maravilhosa ideia de programar
o show do Djavan logo antes do show dos Raimundos? Critério zero. Depois eu
costumo lembrar que o Djavan não parecia estar muito feliz em cena – talvez porque
a galera do público raimundense estivesse vaiando o tempo todo (sim, não foi
apenas para mim que a galera torcia o nariz: eu dividi a honra de ser vaiado junto
com Djavan. Ele no palco, eu na plateia) ou talvez porque ele soubesse que tocar
nesse festival feito por uma rádio de pop rock gaúcho que misturava na
programação Ivete Sangalo com Men At Work, passando por Pato Fu, Wilson Sideral
(o irmão do Rogério do Jota Quest) e Comunidade Nin Jitsu não daria certo. E
realmente não deu. Mas o que é “dar certo”, afinal de contas? Hoje, 23 anos
depois, eu lembro daquela noite como o momento em que eu vi de perto um ídolo,
um artista no melhor sentido da palavra, um músico brasileiro que tem uma das mais
belas vozes que pudemos ouvir ao vivo. Mais do que isso: hoje eu escuto um
podcast onde o próprio artista reflete sobre sua música, clama por edificar o
conhecimento do público e formar novos músicos que possam trabalhar com
profundidade artística. Hoje eu escuto uma entrevista onde ele – vítima de
boatos de internet sobre ser bolsonarista, coisa que nunca foi – chama atenção
para a violência que existe na rede, onde o uso desproporcional da força das
palavras soterra qualquer capacidade de entendimento e interpretação de
entrelinhas, de poesia, e até mesmo de um discurso direto. Um lugar onde as pessoas
só ouvem o que querem ouvir, só entendem o que querem entender e usam do poder
das palavras para atacar e gerar ódio. Um lugar onde aquelas pessoas que me
vaiaram, que o vaiaram, que nos olharam torto e que depois nos chutaram estão
com o microfone na mão, tendo espaço para dizer o que bem quiserem.
Eu tinha 16 anos. Naquele 2000 estava no meio do ensino
médio, ainda ia começar a estudar espanhol, começaria meu primeiro namoro um
ano depois, tinha acabado de começar a fazer teatro e também estava aprendendo
que deixar aflorar emoções em público era um risco. Gostar de Djavan poderia
ser um risco num mundo masculino despotencializado.
Hoje tenho 39. Estou sempre aprendendo que o amor tem várias
faces: é lindo e tenso, é forte e leve, tem um lugar de luz gigante, mas também
de escuridão profunda. Estou aprendendo a chorar. Estou aprendendo a deixar a
lágrima cair quando enxergo beleza nas coisas, nas pessoas, na arte, na música.
Estou aprendendo a deixar aflorar os sentimentos que tantas vezes soterrei por
estar cercado de marmanjos que ainda não descobriram a importância disso, e que
ainda insistem em olhar feio aquele que tenta. Estou aprendendo que o amor, por
ser amor, invade. E fim.