Tem sido assim no teatro. E tem dado certo. E se experimentássemos em outros campos...?
¡Suerte!
Dia de festa, dia de bolo. Às vezes era assim, com todos se reunindo em uma das grandes cozinhas, com um bolo ao centro, comendo e se divertindo.
Naquela noite, o rádio estava ligado, em uma rádio. O locutor falava coisas incompreensíveis e rápidas, em “estrangeiro”, enquanto tocava músicas diversas.
Ele levanta, vai até o bolo e o corta. Não dá atenção ao que se passa no aparelho, apenas cantarola em voz baixa a canção que está em sua cabeça:
Today is gonna a ...
É uma noite especial. Amigos reunidos. Sabia que essa situação, com todas essas pessoas assim, ao mesmo tempo, não se repetiria mais. Tinham pouco mais de um mês e tudo se acabaria.
By now you should’ve... realize la la la la la...
De certa forma, é um daqueles momentos em que, apesar de regretar a falta que vão fazer uns aos outros, relevam. E conversam. E se habituam que a vida é assim mesmo e deu.
Because maybe... you will gonna la la la la save me… and after all…
E pensava em tudo isso. E escutava os ruídos ao seu redor. Vozes cruzadas, risadas esparsas, o rádio tentando uma brecha na atenção, os talheres nos pratos... E de repente a música que martelava na sua cabeça ganhou corpo (e ele até fez uma pausa nas reflexões para lembrar o quão forte era o poder do pensamento). E de repente aquela batida de violão ficou cada vez mais concreta. Pam, pam, pam...
Emergindo de si mesmo, tal como quando se sonha e se é resgatado lá das profundezas subitamente no meio da madrugada, ele olhou para o rádio (há quem diga que o rádio, se tivesse olhos, também teria olhado para ele. Há outros ainda que dizem que sim, os rádios têm olhos) e entre os dois se estabeleceu um jogo de cumplicidade. O rádio, encarando-o de frente, pronunciou sua sentença:
Today is gonna be the day...
Num salto ele desperta. Olha para todos à sua volta. “Vejam”, ele fala baixinho, “o rádio... essa música... eu estava agora, enquanto cortava... vocês viram isso...?” Mas os outros continuam suas conversas sem escutá-lo. Ele olha firme para cada um, procurando um traço de cumplicidade. “A música, essa...” E todos conversam, e riem, e fumam.
Apoiada nos cotovelos, lá do outro lado da mesa, ela sorri para ele. Quando seus olhos se cruzam, ele entende que ao menos uma daquelas pessoas presenciara o momento. Ela faz um gesto afirmativo, quase imperceptível, com a cabeça.
E ele baixa a sua e recomeça a cortar o bolo. Como um segredo invisível – ou visível demais para ser visto? –, a voz misturada com a batida cadenciada toma o espaço e completa a magia do momento.
“Realmente só existe um momento, que é agora mesmo. E é a eternidade. E é o momento onde Deus nos faz uma pergunta, que é basicamente esta: ‘Queres ser eterno? Queres estar no paraíso?’ E nós dizemos ‘Não, obrigado, ainda não...’ Então o tempo é este constante dizer não ao convite de Deus. Isto é o tempo. Não seria o ano de 50 d.C. mais importante que 2009, entende? Só existe um momento, e é nele que sempre estamos. Isto é apenas a narração da vida de cada um, mas aparte disso, não existe mais que uma história, que é a história de passar do não para o sim. Toda nossa vida é ‘não, obrigado. Não, obrigado.’ E finalmente ‘Sim, eu vou ceder. Sim, aceito. Sim, abraço.’ Esta é a viagem. Todos cedem ao sim finalmente.”
Minha avó foi a senhora mais ativa que eu conheci. Levantava cedo, caminhava a cidade inteira catando goiabas para fazer goiabada. Em fogo de chão. Brincávamos dizendo que era o seu caldeirão de bruxa. As melhores goiabadas de Osório, quiçá do RS. Incansável, cheia de dores depois, e com mania de deixar de comer doces na véspera das consultas médicas, para baixar a glicose.
Não tinha doenças. Tá certo, estava em idade avançada. Com 82 anos é normal alguns problemas da idade. E foi isso que me bateu
Mas não foi assim.
Foi rápido, foi inesperado, foi acidental. Uma rua, um carro... bom, a família já conhece este filme, já ouviu esta música. E agora estarão juntas nossas duas crianças, uma de doze, outra de 82, ambas quitadas prematuramente do nosso convívio.
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Saindo da sua casa, a última vez que falei com ela, me veio com um pote de goiabada. “Ia te dar esta goiabada, mas eu não sei se tu podes levá-la lá para onde tu vai.” Minha resposta, sorrindo: “Nem te preocupa, vó, nestes três dias que antecedem a viagem vou dar um jeito de acabar com ela”. Hoje, acrescentaria: “Vó, eu não sei para onde tu vais, mas tenho certeza que nunca há de faltar uma goiabeira e um fogo de chão para a senhora mimar os que estão por perto, como sempre fizeste conosco. Um beijo.”
Poucas vezes presenciei manifestações tão sinceras por parte do público. Numa Europa em que se volta para agradecer três vezes, não importando a qualidade do espetáculo, o ato de aplaudir acaba diminuído e perde o próprio sentido do aplauso – se eu estivesse em cena nesse momento, não saberia se gostaram mesmo ou se estão apenas cumprindo uma obrigação.
Mas ali foi sincero: na nossa frente, o grupo boliviano Teatro de los Andes. A gente ali, em pé, mãos em carne viva tentando demonstrar-lhes o quanto foi importante a obra que acabamos de presenciar. Já são cinco as vezes que voltaram para agradecer. Um som grave começa a ser escutado na sala. Nos damos conta que, por necessidade de demonstrar realmente o quanto foi importante esse momento, somente palmas não são suficientes. É preciso acrescentar os pés. É a multidão bate pés. E o resultado se vê no rosto (e no riso) de cada ator. E de cada “público”.
Único. E sincero.
(Tentei, aqui, escrever um pouco do que foi esse espetáculo. Boa leitura para quem for).