quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Gincana abaixo de mau tempo



Chuva torrencial, exponencial, abundante, daquelas que não escoam por lado nenhum e acabará por fim a submergir um canto todo de uma cidade. Na avenida encharcada, difícil é descer da calçada, tamanho o rio que corre entre pista e meio-fio. Qualquer um que ousasse pôr o pé para fora do abrigo que era aquela parada de ônibus, em meio segundo se transformaria em uma esponja. Ao lado da parada, uma tendinha dessas que vendem coisinhas e comidinhas, transformada em ilha, claro, como a parada ao seu lado, abriga o que nela não coube. Então são dois grupos, numa grande gincana molhada: do lado de lá o grupo da parada observa o ônibus chegando enquanto no seu campo de visão o grupo da tendinha recua em ola para evitar a poça que voa em sua direção. Do outro lado o grupo da tendinha alterna seu olhar entre a esquerda, na esperança de um ônibus que os tire daquela ilha, e a direita, invejando alguém do outro grupo que porventura tenha sentido a sorte de ser resgatado por uma linha. Mas linhas milagrosas são escassas, e raras. E não menos raro é o motorista (?) de ônibus que cruza em alta velocidade na pista central, deixando para trás a esperança do resgate imediato. Ninguém protesta, calejados pela cotidianidade com que isso ocorre – além do mais qualquer movimento brusco significa mais água no corpo, e todos ali sabem que um péssimo motorista não valeria aquele sacrifício. A chuva resolve intensificar os trabalhos. Os dois grupos já têm dificuldade em se enxergar, tamanha a cortina molhada que os separa. Olhando para o chão, sua área seca está cada vez menor, os sapatos (e as meias!) sentem os respingos do dilúvio que cai a poucos centímetros. Apertam-se. Mas a chuva não aproxima os seres humanos. Eles apenas se apertam para escapar da umidade externa, com o olhar no horizonte, quietos, resignados. Eventualmente alguém se liberta, atravessa correndo a avenida, levando a parte que lhe cabe de água para casa. O movimento cessa. Não mais ônibus, não mais carros. O tempo passa. Apenas sons molhados e pensamentos esparsos enchem a cabeça de quem espera. Dois, três, cinco minutos de água e asfalto. Água, asfalto e corredeiras no meio fio. Do outro lado surge ela, menina, pequena, vestida de escola. Nota-se que costuma passar sempre por ali, vinda de alguma aula. Sob os olhares atentos dos dois grupos da gincana, surge com dificuldade, lutando contra a natureza que a quer empurrar de volta. Salta uma corredeira, pisa o asfalto, protege o rosto e o corpo com os braços, inutilmente. Cruza pelo canteiro central. Tem a boca roxa de frio, o casaco empapado, a mochila pesada, o pé vestido em água. Chega à segunda corredeira, a que dará acesso ao grupo da tendinha. Pisa no limite entre asfalto e rio, saltando ao meio-fio. Junta-se ao grupo. Busca um lugar para si. O grupo lhe abre espaço, não por solidariedade, mas por não querer receber a água que aquela inesperada visitante trouxe. A menina treme dos pés à cabeça, arrepiada, frio. A moça da tendinha lhe sorri, nota-se que a freqüência é habitual, elas se conhecem de vista. Não existem palavras nem aproximações mais profundas, mas estamos diante de um daqueles momentos onde a cordialidade superficial se manifesta, como acontece sempre no elevador, na padaria, no balcão: tudo bem? Tudo. Tudo bem? Tudo. Um bom dia. Pra você também. Até mais. Nos vemos. É nessa fração de segundo, entre a chegada da menina encharcada e o sorriso da moça que vende comidinhas e coisinhas, que acontece a aproximação verbal da segunda em direção à primeira: “Oi, tudo bem?”. A outra, composta em camadas de corpo, água, roupa e água, boca roxa e pele arrepiada, sorri batendo queixo: “tudo”.



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