Chuva torrencial, exponencial, abundante,
daquelas que não escoam por lado nenhum e acabará por fim a submergir um canto
todo de uma cidade. Na avenida encharcada, difícil é descer da calçada, tamanho
o rio que corre entre pista e meio-fio. Qualquer um que ousasse pôr o pé para
fora do abrigo que era aquela parada de ônibus, em meio segundo se
transformaria em uma esponja. Ao lado da parada, uma tendinha dessas que vendem
coisinhas e comidinhas, transformada em ilha, claro, como a parada ao seu lado,
abriga o que nela não coube. Então são dois grupos, numa grande gincana
molhada: do lado de lá o grupo da parada observa o ônibus chegando enquanto no
seu campo de visão o grupo da tendinha recua em ola para evitar a poça que voa
em sua direção. Do outro lado o grupo da tendinha alterna seu olhar entre a
esquerda, na esperança de um ônibus que os tire daquela ilha, e a direita,
invejando alguém do outro grupo que porventura tenha sentido a sorte de ser
resgatado por uma linha. Mas linhas milagrosas são escassas, e raras. E não
menos raro é o motorista (?) de ônibus que cruza em alta velocidade na pista
central, deixando para trás a esperança do resgate imediato. Ninguém protesta,
calejados pela cotidianidade com que isso ocorre – além do mais qualquer
movimento brusco significa mais água no corpo, e todos ali sabem que um péssimo
motorista não valeria aquele sacrifício. A chuva resolve intensificar os
trabalhos. Os dois grupos já têm dificuldade em se enxergar, tamanha a cortina
molhada que os separa. Olhando para o chão, sua área seca está cada vez menor,
os sapatos (e as meias!) sentem os respingos do dilúvio que cai a poucos
centímetros. Apertam-se. Mas a chuva não aproxima os seres humanos. Eles apenas
se apertam para escapar da umidade externa, com o olhar no horizonte, quietos,
resignados. Eventualmente alguém se liberta, atravessa correndo a avenida,
levando a parte que lhe cabe de água para casa. O movimento cessa. Não mais
ônibus, não mais carros. O tempo passa. Apenas sons molhados e pensamentos
esparsos enchem a cabeça de quem espera. Dois, três, cinco minutos de água e
asfalto. Água, asfalto e corredeiras no meio fio. Do outro lado surge ela,
menina, pequena, vestida de escola. Nota-se que costuma passar sempre por ali,
vinda de alguma aula. Sob os olhares atentos dos dois grupos da gincana, surge
com dificuldade, lutando contra a natureza que a quer empurrar de volta. Salta
uma corredeira, pisa o asfalto, protege o rosto e o corpo com os braços,
inutilmente. Cruza pelo canteiro central. Tem a boca roxa de frio, o casaco
empapado, a mochila pesada, o pé vestido em água. Chega à segunda corredeira, a
que dará acesso ao grupo da tendinha. Pisa no limite entre asfalto e rio,
saltando ao meio-fio. Junta-se ao grupo. Busca um lugar para si. O grupo lhe
abre espaço, não por solidariedade, mas por não querer receber a água que
aquela inesperada visitante trouxe. A menina treme dos pés à cabeça, arrepiada,
frio. A moça da tendinha lhe sorri, nota-se que a freqüência é habitual, elas
se conhecem de vista. Não existem palavras nem aproximações mais profundas, mas
estamos diante de um daqueles momentos onde a cordialidade superficial se
manifesta, como acontece sempre no elevador, na padaria, no balcão: tudo bem?
Tudo. Tudo bem? Tudo. Um bom dia. Pra você também. Até mais. Nos vemos. É nessa
fração de segundo, entre a chegada da menina encharcada e o sorriso da moça que
vende comidinhas e coisinhas, que acontece a aproximação verbal da segunda em
direção à primeira: “Oi, tudo bem?”. A outra, composta em camadas de corpo,
água, roupa e água, boca roxa e pele arrepiada, sorri batendo queixo: “tudo”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário